Vivemos num país de títulos, sobretudo de títulos académicos, diplomáticos ou militares. A esses, juntam-se uns comendadores, que são normalmente gente que subiu a escala social vindos do degrau mais baixo, mas à força de muito trabalho, punhos fortes e boa fortuna.
Criámos uma sociedade onde o título conta mais do que o valor, a capacidade e a experiência das pessoas. É, igualmente, uma sociedade provinciana, que não entende o que significam os sucessos obtidos nos círculos globais.
Vem isto a propósito de uma questão que me endereçaram hoje. Tinham a minha participação prevista para uma actividade a que davam muita importância, uma actividade cheia de titulados, mas não sabiam que designação colocar à frente do meu nome.
Não quis complicar-lhes a compreensão e sugeri um título que me pareceu claro: Vice-campeão do jogo do berlinde no Largo de S. Mamede em Évora. O único problema que fez esta honraria ir por água abaixo foi que essa glória se refere aos anos sessenta do século passado. Se fosse adoptado, eu entraria no grémio dos Excelentíssimos Dinossauros. Ora, segundo parece, esse grémio está com todas as quotas preenchidas, não tem vagas disponíveis, para além de ter uma longa lista de espera.
No 1º de maio de 1997, o avião alugado pelas Nações Unidas que me tranportava para a cidade de Bukoba, a capital da província septentrional da Tanzânia, na fronteira com o Uganda e o Ruanda, e à beira do Lago Vitória, teve um problema semelhante ao que hoje aconteceu e que matou cerca de 20 passageiros. O aeroporto fica entalado entre as montanhas e o lago. Se a aproximação não for feita com bom tempo e com profissionalismo, existe o risco de se sair da pista e cair no lago. No nosso caso, tivémos a nosso favor o facto de ter chovido intensamente durante vários dias antes do nosso acidente. O avião deslizou em direcção ao lago, mas os últimos 30 ou 40 metros entre o fim da pista e o lago tinham-se transformado num pântano. O avião atolou-se imediatamente e entrou de focinho na água. Havia um só piloto a bordo -- eu estava sentado no lugar do co-piloto -- e mais sete passageiros. O nosso destino era a fronteira com o Ruanda, para ir gerir uma chegada em massa de refugiados hutus. Um de nós perdeu a vida neste acidente.
Ontem teria sido o aniversário da minha amiga Ingrid A. Há muito que não tinha notícias dela. Procurei entrar em contacto com ela, aproveitando a ocasião do aniversário. E tive um grande choque. Ingrid e o marido faleceram num acidente de barco, num dos fiordes do centro da Noruega, no verão de 2019. Chocaram contra os rochedos e morreram no local.
Eu havia atribuído o interregno nos nossos contactos à pandemia, às mudanças da vida e ao facto de Ingrid estar muito ocupada como presidente de uma das câmaras municipais de uma zona costeira do centro da Noruega. Tinha sido eleita aos 28 anos, estava em 2019 a preparar a sua reeleição, aos 33 anos de idade. Era uma das jovens mais brilhantes do Partido Trabalhista da Noruega, colaboradora directa de Jens Stoltenberg, quando este fora primeiro-ministro da Noruega, e também do actual primeiro-ministro, Jonas Gahr Store. Era, igualmente, uma das jovens mais bonitas da sua geração.
Depois de saber isso, já não escrevi mais nada, ontem à noite.
A inflação é hoje um verdadeiro problema para as famílias. O custo dos bens essenciais tem subido de uma maneira inexplicável. Os mesmos cem euros compram hoje muito menos, aquando do abastecimento nos supermercados. Existem produtos que nas últimas semanas aumentaram de preço entre 40 e 50%. E não se percebe a razão para uma subida dessa magnitude. Na construção civil, temos situações semelhantes e uma total imprevisibilidade sobre os preços futuros. Noutros sectores, passa-se o mesmo. A quebra do valor do euro tem um enorme impacto sobre os produtos importados, nomeadamente sobre os preços dos bens energéticos. O Banco Central Europeu hesita, no que respeita ao ajustamento das taxas de juro, tendo em conta as repercussões que taxas mais altas teriam sobre os países europeus mais endividados. Entretanto, os rendimentos das famílias não acompanham esta onda inflacionista.
Hoje, no Diário de Notícias, num Especial, na página 21, escrevo o que se segue.
"A minha Mãe aprendeu a escrever e a ler graças ao Diário de Notícias. Nasceu e foi criada na cintura das pequenas quintas que, nos arredores de Évora, alimentavam a cidade. Há noventa e poucos anos, Évora era em geral pobre e as gentes das quintas eram ainda mais pobres. As famílias tinham muitos filhos e cada um trabalhava no campo, para ajudar a precária economia doméstica. Ainda menina de tenra idade, ficou com o encargo de pastorear os perus que acabariam no mercado. Teria oito ou nove anos quando viu pela primeira vez umas páginas do DN, que um irmão mais velho trouxera da cidade. Com uma vara, começou a copiar e a juntar as letras, rabiscando-as no chão por onde os perus vagueavam. Pouco a pouco, aprendeu a escrever. Só depois se apercebeu do significado de cada letra e a mágica ligação entre elas, a leitura. E sempre que alguém ia à cidade, pedia-lhe que trouxesse pelo menos uma página do DN, fosse de que dia fosse."
Regressar a Lisboa às cinco da tarde, vindo de Setúbal, neste domingo de Sol, foi um inferno. A fila do pára-arranca começava a mais de três quilómetros da Ponte 25 de Abril. Parecia que metade da cidade saíra para sul e estava agora a regressar a casa.
Não tenho experiência suficiente para dizer se esta é uma situação normal num domingo de Dezembro. Mas que as pessoas andam de um lado para outro, não tenho dúvidas. Uma fila assim até dá para esquecer que há uma epidemia de Covid.
Também fiquei com dúvidas se a operação Stop montada pela PSP após as portagens da ponte, à entrada da mesma na direcção de Lisboa, fora uma coisa bem pensada. A verdade é que tinha um efeito de obstáculo que atrasava ainda mais a passagem pelas portagens. E tinha certamente um impacto negativo sob a disposição dos automobilistas que haviam passado 57 minutos a fazer os últimos três quilómetros. Compreendo, claro, que os agentes estavam ali por causa de ordens superiores. O que não entendo, e isso acontece várias vezes, é a lógica dessas ordens superiores.
Fiz hoje algo que não fazia há muito: ir ao Colombo, o centro comercial que há dias esteve nas notícias, por causa de um assalto a uma relojoaria de luxo. Não levei uma marreta nem fui roubar ninguém. Estive lá por precisar de fazer umas compras. E notei que o centro comercial estava a abarrotar, com gente por toda a parte. Dir-se-ia que a covid-19 já faz parte do passado. A única indicação sobre a pandemia era a máscara que cada um tinha que usar.
Hoje, na minha caminhada matinal ao longo do rio, o meu amigo António, que vende óculos de sol e paus para selfies em frente à Torre de Belém, foi directo ao assunto. Disse-me que não andasse na rua sem máscara, pois na minha idade bastaria apanhar uma gripe e seria o fim da história. Acrescentou que mesmo ele, que tem sessenta anos, anda de máscara. Como ele não sabe a minha idade, perguntei-lhe quantos anos me dava. Respondeu, com todo o respeito com que me trata, setenta e muitos, perto dos oitenta.
Tirou-me todas as ilusões. Depois, fiquei a pensar que devo estar a precisar de umas semanas de férias.
Durante a tarde, participei num colóquio internacional organizado pelo US Institute of Peace, uma organização com apoio federal, mas não- partidária, baseada em Washington. Participaram igualmente vários antigos colegas meus e muitos outros especialistas. À medida que cada um falava eu ia consultando a respectiva nota biográfica. A minha intervenção era uma das últimas, para dar um enquadramento mais geral ao que havia sido dito. Depois de mim, só falava mais uma académica, baseada no Canadá, uma pessoa bem mais jovem do que eu. Por isso, quando chegou à minha vez já era possível constatar que eu era o orador e o participante mais velho de entre todos.
E lembrei-me do António. Só que por videoconferência não é preciso colocar uma máscara. Mas poderia ter posto uns óculos de sol, para disfarçar as rugas. Os que o António vende, quando vende, que o negócio está muito fraco, para pouco mais servem do que ocultar as ditas.
Tinha uma velha carteira em couro que precisava de ser cosida, pois tinha rebentado pelas costuras. Há anos. Na Bélgica primeiro, depois em Lisboa, sempre sem conseguir encontrar alguém que pudesse fazer o trabalho. Já não se encontram artesãos do couro, por muito que se procure.
Com excepção da província, do Alentejo profundo. Aqui em Ferreira do Alentejo, pedi a alguém, que sabe quem sou, se haveria um sapateiro ou artesão similar que me pudesse ajudar. Havia, sim senhor. O homem já não vive do conserto dos sapatos – agora todos calçam chinês e deitam fora, quando se estraga –, tem outras ocupações, mas estava disposto a fazer o trabalho, ao fim de um dia de labuta na plantação de vinha que o faz viver.
E assim foi. A carteira ficou reparada a preceito. E o homem não quis ser remunerado. Achou que era uma honra fazer esse trabalho para um antigo alto quadro da ONU.
Fiquei a pensar que por aqui vive-se num mundo diferente, em que a honra conta e vale muito. Certamente mais do que a minha velha carteira e do que muitos políticos pensam valer.
A subida não era muito pronunciada. Mesmo assim, o ciclista que veio ter comigo, na parte mais alta da rua, vinha esbaforido. Mal se aguentava nos pedais. Olhei para ele e vi que era uma pessoa de idade avançada. E isso explicaria tudo.
Erro. Na verdade, não explicava nada. O homem, um alentejano de gema, mais ainda do que eu, disse-me que havia nascido, aqui nesta mesma terra, em 1958. Ou seja, eu, que lhe dava perto de oitenta, tive de reduzir a estimativa da sua idade para a realidade dos 63 anos.
Explicou-me que trabalhava no duro desde a idade dos 10 anos. O pai dissera-lhe que na casa deles, só podia comer quem, já sendo capaz, trabalhasse. E ele assim o fez. A escola primária – a 4ª classe – foi feita ao fim do dia, depois de uma jornada de trabalho.
Assim era o Alentejo daqueles tempos, do Estado Novo, que nada tinha de novo nem de moderno, nem mesmo de humano, antes pelo contrário. Assim era a miséria de quem nada tinha, para além da infelicidade de ter nascido numa família pobre.
E o que vi hoje foi um fim de linha de um passado que ainda tem um impacto nas terras mais recuadas. No Alentejo, por exemplo.