Ontem fiz o que milhões fizeram: passei horas a ver o desenrolar dos acontecimentos em Washington. E a perguntar a mim próprio como foi possível deixar acontecer o que aconteceu. Os serviços de polícia dos EUA têm uma enorme capacidade em matéria de análise de informações. Não me conseguirão convencer que o ataque ao Capitólio foi uma surpresa. Qualquer medíocre analista, sabendo o que o infame Donald Trump preparava há dias, poderia prever que haveria confusão à volta do Congresso, durante a cerimónia de confirmação de Joe Biden. E, com base nessa análise, centenas, mesmo milhares de polícias e guardas nacionais, seriam de imediato mobilizados, antecipadamente, para proteger a cerimónia.
Nada disso aconteceu. Os rufias e os primários, radicais de todo o género, puderam invadir o edifício e atacar um processo democrático. Com a bênção e o incitamento do fulano que ainda está na Casa Branca.
Um crime, uma vergonha, um prenúncio do que poderá acontecer no futuro.
Trump precisa de ser destituido de imediato e investigado. Essa será a única maneira de lavar a mancha que ontem ficou no tecido democrático norte-americano.
A apresentação do chamado “plano de paz”, que ontem teve lugar na Casa Branca, fez-me lembrar algo que vou dizendo de vez em quando: uma boa parte das iniciativas políticas são meros actos teatrais. Espectáculo, luz, som e espelhos. Isto é particularmente verdade nestes tempos de televisão e de imagens. Faz-se comunicação, não se resolvem problemas.
Donald Trump, ao nomear John Bolton como Conselheiro de Segurança Nacional, abre um novo capítulo na via da política de confrontação internacional que resolveu seguir como opção. John Bolton é um extremista de ideias simples, que vê as transacções dos EUA com o resto do mundo como uma relação de forças. O que conta, nessa óptica, é a imposição da vontade americana, e dos seus interesses, a todo o custo, por todos os meios, incluindo os militares. Ao assumir a nova função, que é de sobremaneira importante, Bolton vai poder dizer, com a brutalidade que define a sua maneira de ver o mundo, “esfola”, “esfola”, quando o Presidente disser “mata”.
Temos assim um par ideal para criar um catástrofe internacional de grandes proporções.
Existem, é evidente, razões de sobeja para que fiquemos preocupados.
Com todos os problemas legais e políticos, de política interna e da justiça americana, que Donald Trump tem pela frente, há que esperar por tudo. Por exemplo, por uma distracção guerreira, um bang aqui, acolá, no Irão ou na Coreia do Norte, possivelmente ainda noutro sítio, algo a sério, que desvie as atenções e que caiba dentro da estupidez internacional que prima cada vez mais na Casa Branca.
Hoje teve lugar em Washington uma conferência internacional de apoio ao Sul Sudão. Este novo país, independente há menos de 6 meses, ocupa uma posição estratégica no centro de África. Possui recursos naturais muito importantes, incluindo petróleo. É um país em construção, sem infra-estruturas, sem administração pública, com enormes problemas de desenvolvimento, mas, ao mesmo tempo, com um potencial extraordinário.
A Europa foi a grande ausente da conferência. O Reino Unido, que tem ambições na região, não tem deixado espaço para a UE. Esta é uma constatação importante.
Fora da UE, a Noruega e os EUA são os parceiros por excelência do Sul Sudão. Para além destes três doadores, a Turquia é o outro interveniente de peso. Esta é a segunda constatação importante. A Turquia pesa cada vez mais em certas regiões do globo. A liderança em Ankara tem como objectivo alargar ao máximo as áreas de influência da Turquia. Estão a consegui-lo.
A direita americana, personificada pelos membros Republicanos da Câmara dos Representantes, não consegue aceitar que o Presidente seja um Afro-americano. Tem mostrado, nos últimos dias, que está disposta a tudo, mesmo a pôr a economia de pantanas, com o único objectivo de criar uma situação política que seja desfavorável à reeleição de Barack Obama.
Dizia alguém, não me lembro agora em que país europeu, que a direita desse país era a mais estúpida do mundo. Penso que a americana ultrapassa qualquer outra. O problema é que uma crise financeira nos Estados Unidos tem repercussões globais.
Os telegramas da Secretaria de Estado, agora divulgados, deram instruções claras sobre os dados que os diplomatas americanos junto da ONU deveriam obter sobre os altos funcionários da Organização.
Fui um dos visados.
Algumas dessas informações, como por exemplo, o tipo de DNA, e outros dados biométricos, os números dos cartões de crédito, as passwords ou senhas das contas email, e outras questões meramente pessoais, ultrapassam amplamente o que é admissível. Mostram que existe uma cultura de profunda suspeição e de grandes receios, de hipersensibilidade exagerada, no seio da administração americana. Como se fossem os serviços secretos quem determina a agenda.
Mais. Revelam, igualmente, que tudo o que não é de origem americana é visto com profunda desconfiança. E com muita arrogância. Pelo menos, por alguns, com responsabilidades importantes.
No Sábado, Washington assistiu a dois comícios políticos. Celebrava-se nesse dia mais um aniversário do discurso histórico de Martin Luther King intitulado "I have a dream".
Num deles, um mar de gente veio ouvir Sarah Palin, antiga governadora do estado do Alasca e candidata à vice-presidência dos EUA nas últimas eleições. Uma mulher ultra-conservadora que se está a transformar na porta-estandarte das ideias republicanas mais à direita. A quase totalidade dos presentes era branca.
Um par de milhas mais ao lado, uma outra multidão veio ouvir o líder negro Al Sharpton. O Rev. Sharpton é um homem de posições extremas, quando se trata da defesa dos direitos dos afro-americanos. É, como Sarah Palin, muito controverso. As muitas pessoas presentes eram, quase todas, negras.
Assim se extremam as posições nos EUA de 2010. Quer de um lado quer do outro, a questão da cor da pele continua a ter um peso desmesurado em matéria política.