Um esboço sobre a Venezuela
Quando se diz “golpe de Estado”, toma-se posição. Golpe de Estado é um acto de força, ilegítimo, conspirativo e contra o líder legalmente constituído. Dizer que é um golpe significa julgar, tomar partido. Convém ter isso presente, quando se escreve e fala sobre a Venezuela e o desafio de poder em curso.
Mais ainda. Analisar a situação actual nesse país a partir da teoria política dos golpes de Estado faz assentar o raciocínio e as suas conclusões numa base errada. É ainda mais incorrecto quando se recorre a esquemas de análise e da teoria política dos anos 30 do século passado, agora, quase 100 anos depois e em contextos geopolíticos e societais que não existiam na altura. Trostky e outros fazem parte da história, estão pura e simplesmente fora do mundo de hoje. Não servem como guias para as crises de hoje.
O que alguns nos querem apresentar como um “golpe de Estado falhado” é, na realidade, um levantamento popular, uma convergência de rebeliões cidadãs. Nomeadamente, das populações que compõem o tecido social urbano que se situa no patamar dos rendimentos baixos e médio-baixos, embora acima da linha da pobreza absoluta e da miséria. Na verdade, são os “novos pobres” da Venezuela caótica e corrupta, que as políticas rasteiras e marcadamente incompetentes de Nicolás Maduro arrastaram para um quotidiano de desespero, de escassez absoluta de bens essenciais. Uma política que também levou à falência dos serviços básicos e fundamentais, sobretudo na área da saúde pública. Quando não há futuro, o presente traz os povos para a rua.
Por outro lado, para além do quadro negativo e sem saída que é a realidade nacional, há que analisar a situação a partir do contexto regional e internacional em que a Venezuela se insere. Primeiro, na América Latina, e também no contexto da produção de petróleo e do futuro do sistema político vigente em Cuba. Cuba depende da Venezuela, como esta depende de Cuba. Fazer cair uma acarreta consequências catastróficas para a outra. Depois, haverá que ter presente o confronto cada vez mais aberto entre os Estados Unidos, a Rússia e a China. Os três têm cartas em jogo no poker que se trama na Venezuela.
No meio de tudo isto, e para além da posição bilateral de meia dúzia de Estados europeus, a resposta da União Europeia é o que pode ser. Fraca, sem qualquer tipo de peso estratégico, digo eu, e assim poderá ser vista por vários governos na região a que pertence a Venezuela. A criação de um chamado “Grupo de Contacto” pode ter quatro leituras principais. Primeiro, que assim se evita dar a impressão que não há resposta nem iniciativa. Segundo, que não há acordo para reconhecer a urgência da situação actual, ao dar-se ao “Grupo de Contacto” um prazo de três meses para produzir resultados. Terceiro, que se ignora a existência do “Grupo de Lima” e a influência dos Estados Unidos no seio desse grupo latino-americano. Quarto, que não existe uma política comum em relação à América Latina e, em particular, em relação ao Brasil, Colômbia, México e Cuba, que são os países que contam na região, quando se trata da crise venezuelana.
Qual é a estratégia para os próximos tempos? Quer por parte de Nicolás Maduro, de Juan Guidó, e dos de fora? Isso seria tema para mais um longo texto, tendo sobretudo em conta que se trata de um conflito que só pode cair para um lado ou para o outro. Uma pergunta complexa, cujas respostas estão neste momento a ser ensaiadas por quem se ocupa desse tipo de cenários. E que não escreve blogs nem artigos de jornal. Dar a entender uma coisa e preparar outra faz parte dos próximos passos.